Queridos amigos leitores, buenos dias buenas noches bueníssimas tardes!
A história de hoje é um convite que vim tecendo nas últimas semanas.
Há alguns meses, tive o prazer de conhecer o trabalho da artista Ameka Nakamura em sua exibição solo em Ebisu, Tóquio. Em cartas, pude ouvir sobre suas referências e imaginário, e, no processo de absorção, tracei paralelos e interpretações que partem, é claro, de meus próprios olhos.
Minha casa fica relativamente longe de Ebisu, um pouco mais de uma hora entre trens. E honestamente, fui com o objetivo único de visitar a exposição. Lembro de ver essa imagem no material de divulgação:
E ter o coração roubado!
Mas antes de entrar nas obras, um panorama geral.
Criança-flor: passado, infância, nostalgia.
Das paisagens que nos cercam e constróem nossos olhares; o que fica, o que escolhemos e o que nos comove. Talvez seja uma eterna questão e metamorfose na jornada de nos compreendermos para nos expressarmos. Ameka Nakamura, ao pincelar suas influências, revolve as suas lembranças.
Seu lar era, por si só, um microcosmo sensorial: o pai, dono de um brechó de antiguidades, e a mãe, costureira, criavam um ambiente saturado em cores, texturas, o faro de tramas antigas e objetos de histórias ocultas.
Entre pilhas de cores históricas, formas por vezes estrangeiras, o arsenal de paletas e ferramentas de um estúdio costureiro, fica a promessa: de um diálogo silencioso entre passado e presente. Já muda em solo fértil de imaginário.
Em suas palavras:
1960~70年代の音楽、カルチャーを愛す現代のflowerchild.
"Uma criança-flor nascida em tempos modernos que é apaixonada pela música e cultura dos anos 60 e 70." - Ameka Nakamura, 2024. (Humilde tradução minha).
Tokaido Shinkansen!
Posso somente me perder em pensamentos sobre como exatamente essa paixão e imersão coloriram a vida, pensamentos e trabalho da artista. Porém, num simples recorte cronológico, além dos estímulos do lar, foram também anos de muita prosperidade em solo japonês — não apenas de crescimento econômico, mas de uma efervescência cultural, talvez marcada por uma certa rebeldia entre tradições, olhares do futuro, influências estrangeiras, rápida modernização e o pós-guerra.
Interpretei o espírito do tempo, pelo cinema de Nagisa Oshima, os manifestos do grupo Gutai Art e Neo Dada Organizers, e a ascendência do novo design gráfico e publicidade experimental, na qual sucederam drásticos rompimentos com o formalismo e convenções visuais para a adoção de abordagens vanguardistas. Tomo como exemplo a mencionada Era Dourada dos Pôsteres Japoneses (60s/70s) com grandes contribuições do artista Tandoori Yokoo, que mistura referências tradicionais do Ukiyo-e, Shodō e mitos locais com elementos pop, psicodélicos e fragmentações visuais.
As artes e design da época refletiam o clima inventivo, o diálogo com as vanguardas globais, a contracultura e a onda de protestos estudantis, e influenciaram o tecer da vida social e a cultura pop de maneira profunda. Esse contexto somado ao boom econômico sem precedentes e a consolidação da infraestrutura moderna seguiram nutrindo a abundância, intercâmbio, diversidade, experimentação e a doce sensação de um futuro de oportunidades, em especial, para a juventude.
Ameka Nakamura nasceu no ano de 1976 na cidade de Tóquio. Conseguimos refletir o turbilhão?
Reuni algumas imagens para viajarmos junto.
A Intenção e as Cores
Bom, vamos então mergulhar um pouco nas obras.
Ao me escrever, Nakamura-san me trouxe lindas palavras. A questionei sobre como ela se entendia e identificava enquanto artista e ela falou sobre cores.
As compreendi em sua prática quase como entidade autônoma que tem muito bem suas vontades próprias. Nakamura adentra então como maestra, regente de uma harmonia, polifonia visual. Em sua técnica à óleo, a artista brinca sobre fabricar mil-folhas em suas obras — sim, o doce! — posto que sobrepõe camadas e camadas de cor, assentindo, ao meu ver, a individualidade original da matiz, a unidade concebida por sua mescla e a consonância de suas nuances com as formas e tons da totalidade; polifonia em sistema integrado.
E, em sua avidez por conduzi-las como em uma composição sonora, as camadas constróem textura; paletas táteis. Qualidade talvez favorita minha em suas obras: a cor transformada em tecido. Aspecto demonstrado nos delicados esfumados e sobreposições de Nakamura. Me encanta vislumbrar pequenos detalhes das cores escondidas nas gradações e ter um índice do processo da artista em seus quadros.
Sobre sons e cores, separei duas composições que, para mim, muito combinam com o entretom da artista (recomendo escutar durante a leitura):
Nakamura menciona também a importância da intenção, afirmando que sua escolha cromática não conta com o acaso e que estas vêm sem ambiguidade. Segundo ela, uma pintura sem intenção não atravessa a sensibilidade do observador, não o “fere” como uma flecha de significado. Para tal, ela afirma preferir também acabamentos mate para as telas, posto que permitem que a cor se expresse de maneira mais crua e visível, aspecto que eu absolutamente entôo.
Ao colocar as cores em camadas, crio uma profundidade que não pode ser definida por uma única cor, assim como a ressonância de uma composição musical polifônica.
Ameka Nakamura, 2024. (Tradução minha).
彼は誰時「かわたれどき」
Na conversa, surgiu a expressão japonesa「彼は誰時」(Kawataredoki), explicado por ela em essência como: momento “quem é ele”. Período do dia no qual a luz é tão limitada e as formas tão indistinguíveis, que um só poderá saber quem cruza seu caminho ao perguntar. No dicionário, consta que o termo originalmente referia-se ao amanhecer ou crepúsculo, porém o crepúsculo passou a diferenciar-se pelo termo 「たそがれどき」(tasogaredoki) de natureza semelhante.
O aspecto inegociável é criar profundidade na pintura. Busco uma qualidade poética, com toques de dor e tristeza como temperos. As pinturas refletem a humanidade do artista e não podem mentir, o que é um consolo para mim. Para um artista, a criação é a melhor terapia, transcendendo a realidade e se deformando em uma dimensão atemporal. Eu chamo isso de “zona”, e um artista é alguém que pode se mover livremente entre dois reinos. Para mim, ser um pintor não é apenas uma profissão, mas um modo de vida.
Ameka Nakamura, 2024. (Japonês para Português a partir de Software de Tradução + humilde revisão da autora).
Após nossas correspondências, passei a lembrar de Nakamura-san com frequência ao voltar para casa no crepúsculo, em especial em meados de inverno no qual o Sol se põe, tristemente, tão cedo. Mesmo em Tóquio, fora das ruas principais não há iluminação. Os rostos viram silhuetas. Se não há medo, um curioso período de sombras, azul petróleo no céu, um prenúncio da noite, fenecer do dia. Lembro de meu pai falar muito dessa cor para mim, o azul mais lindo do dia, ele diz.
Me encanta saber do apreço pelo mistério vespertino de Ameka. Olhos observadores dos fenômenos, talvez da magia das transições, dos espíritos em todas as coisas.
Li esse lindo trecho sobre o azul esses dias:
"Assim como perseguimos com prazer um agradável objeto que nos escapa, é com prazer que vemos o azul, não porque ele nos pressione, mas porque nos arrasta em seu encalço”. O azul nos atrai porque de costume o associamos a uma profundidade inacessível em que gostaríamos de mergulhar: “o zênite e o longínquo / escoam, azuis, infinito adentro”.
Goethe, Doutrina das Cores, citado e comentado por Pierre Hadot, Não Esqueça de Viver.
Os Pássaros
Também deve ter notado uma silhueta assídua nas telas. Saí mordida de curiosidade para entender o que significava o pássaro, por vezes esvoaçante, ora silencioso, para Nakamura.
Ao observar suas obras, julguei que seria talvez uma entidade, um espírito visitante de seu imaginário, ou um símbolo de seu próprio fantasma.
Ela me conta que começou a pintar pássaros há cinco anos atrás.
O pássaro na tela sou eu e você (espectador).
Ameka Nakamura, 2024. (Tradução da autora).
Ao caminhar pelas montanhas, imagens e lembranças das paisagens passaram a habita-la e, naturalmente, as criaturas e seres começaram a habitar também suas imagens.
“É certo que o pássaro está olhando para algum lugar distante, sem nos encarar. Também é certo que ele é solitário e não pode ser capturado por ninguém. Que tipo de existência desejo retratar? Quero retratar uma existência como a de uma planta alpina que floresce com orgulho e dignidade sem ser conhecida por ninguém. Estou confiando a esse pássaro uma alma ideal. O pássaro que pinto não é um pássaro domesticado em uma gaiola, mas um pássaro sem nome, que não existe em livros de ilustrações. Portanto, quero que as pessoas que veem minhas pinturas desfrutem do prazer de imaginar uma história, adicionando nomes, adjetivos e poemas à sua escolha. O pássaro que nasceu em minha imaginação é um pássaro que o homem nunca poderá agarrar, um pássaro que não pode ser tocado, um pássaro que olha para algum lugar distante, que não se reúne com ninguém, mas que está esperando por alguém…”
Ameka Nakamura, 2024. (Tradução da autora).
Hadot em Não Esqueça de Viver recorda a personagem Wilhelm de Goethe em Os Anos de Aprendizagem, afirmando que para esta o pássaro é o símbolo do poeta: “o poeta, como o pássaro, pode planar acima do mundo”, a fim de alcançar um olhar único dirigido ao todo. Menciona, então "Elevação" de As Flores do Mal, Baudelaire:
Por sobre os pantanais, os vales orvalhados,
As montanhas, os bosques, as nuvens, os mares,
Para além do ígneo Sol e do éter que há nos ares,
Para além dos confins dos tetos estrelados,
Flutuas, meu espírito, ágil peregrino,
E, como um nadador que nas águas afunda,
Sulcas alegremente a imensidão profunda
Com um lascivo e fluido gozo masculino.
Vai mais, vai mais além do lodo repelente,
Vai te purificar onde o ar se faz mais fino,
E bebe, qual licor translúcido e divino,
O puro fogo que enche o espaço transparente.
Depois do tédio e dos desgostos e das penas
Que gravam com seu peso a vida dolorosa,
Feliz daquele a quem uma asa vigorosa
Pode lançar às várzeas claras e serenas;
Aquele que, ao pensar, qual pássaro veloz,
De manhã rumo ao céu liberto se distende,
Que paira sobre a vida e sem esforço entende
A linguagem da flor e das coisas sem voz!
Baudelaire, "Elevação". In: As Flores do Mal, tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
(poema a qual dedicado a meu querido amigo Lucas! Oi, amigo!)
Paisagens Internas
Nós somos uma paisagem de tudo o que vimos.
Isamu Noguchi
Do que me encanta e convida para o trabalho de Nakamura-san, talvez em essência reúna-se na sua relação com o espaço natural e sua releitura sensível e imaginativa dessas paisagens que evolvem em seus próprios sonhos e pensamentos. Ao admirar suas telas noturnas, sinto um forte desejo de caminhar por seus desenhos em um sonho; e na introspecção dos cenários, esbarrar comigo mesma, minhas memórias, emoções, a artista, as pessoas que passam e as transformações internas que todos vivenciamos em nossa própria complexidade.
Me alivia porém, sentir que o caminhar reflexivo em suas montanhas, campos, jardins e florestas não será transbordante, descomedido e depredador, mas silencioso. Como se pudesse observar a mim mesma, cumprimentar aspectos, encaminhar anseios e necessidades; sem ser devorada por minha própria sombra.
Ameka me conta sobre seu cuidado na ambientação e iluminação nas pinturas, aliado ao seu desejo de evocar o repouso, condutor de narrativas profundas e internas. “O pássaro sou eu e você (observador)”. Para mim, o pássaro é onisciente e entende toda dor e beleza nos olhos; ele chora, respira e medita a dor e beleza do mundo.
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Obrigada pela leitura e até a próxima.
Ayana
Agradecimentos
Obrigada, Nakamura-san, por nos aproximar dessa possibilidade sensível, fantástica e graciosa de entrever a natureza como elemento constituinte dos nossos próprios imaginários. E é, claro, contribuir com muito carinho e cuidado para a construção desse artigo.
Rodapé
Artista entrevistada: Ameka Nakamura
“Ama viagens às montanhas, natureza, acampamentos, música, livros ilustrados, cartas e arte.”
Born in Tokyo 1976.
Instagram: https://www.instagram.com/ameka_nakamura/#
A exposição na galeria Nenohoshi contou com uma série de pinturas à óleo de tamanho médio a pequeno e duas colagens tridimensionais com pintura. Em temática percebi paisagens imaginárias, pássaros, ninhos, flores, a noite, sonhos, estampas, música, a figura de uma jovem e o símbolo da Cruz presente de maneira diversa nas obras.
Carreira Ameka Nakamura
Formou-se em 1997 na Joshibi Junior College of Art and Design, Departamento de Belas Artes, Curso de Pintura em Óleo.
Desde a primeira exposição individual em 1999, vem apresentando trabalhos de forma contínua.
16ª exposição individual “Gentle Color Rain” em maio de 2024, na Galeria Ko-no-Hoshi em Daikanyama.
2022 “BIRD’S SONG” na Galeria Ko-no-Hoshi em Daikanyama.
2020 “Letters from the Mountains” na Galeria Ko-no-Hoshi em Daikanyama.
Outras diversas exposições individuais e coletivas.
Prêmios
2023: Selecionada para o 2º FEI PRO ART AWARD.
2021: Prêmio de Excelência na Divisão de Livros Ilustrados para Adultos no 6º Prêmio de Publicação de Livros Ilustrados.
2016: Selecionada para a 11ª Exposição do Grande Prêmio Kumagai Morikazu.
2013: Selecionada para a 10ª Exposição do Grande Prêmio Kumagai Morikazu.
Muito bom é pouco…
Ayana,
Grato por compartilhar…